quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Inquilinos

Inquilinos

Inquilinos
Luis Fernando Veríssimo

Ninguém é responsável pelo funcionamento do mundo.

Nenhum de nós precisa acordar cedo para acender as caldeiras e checar se a Terra está girando em torno do seu próprio eixo na velocidade apropriada, e em torno do Sol de modo a garantir a correta sucessão das estações. Como em um prédio bem administrado, os serviços básicos do planeta são providenciados sem que se enxergue o síndico – e sem taxa de administração. Imagine se coubesse à humanidade, com sua conhecida tendência ao desleixo e à improvisação, manter a Terra na sua órbita e nos seus horários, ou se – coroando o mais delirante dos sonhos liberais – sua gerência fosse entregue a uma empresa privada, com poderes para remanejar os ventos e suprimir correntes marítimas, encurtar ou alongar dias e noites e até mudar de galáxia, conforme as conveniências de mercado, e ainda por cima sujeita a decisões catastróficas, fraudes e falência.

É verdade que, mesmo sob o atual regime impessoal, o mundo apresenta falhas na distribuição dos seus benefícios, favorecendo alguns andares do prédio metafórico e martirizando outros, tudo devido ao que só pode ser chamado de incompetência administrativa. Mas a responsabilidade não é nossa. A infra-estrutura já estava pronta quando nós chegamos. Apesar de tentativas como a construção de grandes obras que afetam o clima e redistribuem as águas, há pouco que possamos fazer para alterar as regras do seu funcionamento.

Podemos, isso sim, é colaborar na manutenção da Terra. Todos os argumentos conservacionistas e ambientalistas teriam mais força se conseguissem nos convencer de que somos inquilinos do mundo. E que temos as mesmas obrigações de qualquer inquilino, inclusive a de prestar contas por cada arranhão no fim do contrato. A escatologia cristã deveria substituir o Salvador que virá pela segunda vez para nos julgar por um Proprietário que chegará para retomar seu imóvel. E o Juízo Final por um cuidadoso inventário em que todos os estragos que fizemos no mundo seriam contabilizados e cobrados.

- Cadê a floresta que estava aqui? – perguntaria o Proprietário. – Valia uma fortuna.

E:

- Este rio não está como eu deixei...

E, depois de uma contagem minuciosa:

- Estão faltando cento e dezessete espécies.

A Humanidade poderia tentar negociar. Apontar as benfeitorias – monumentos, parques, áreas férteis onde outrora existiam desertos – para compensar a devastação. O Proprietário não se impressionaria.

- Para o que eu quero o Taj Mahal? Sete Quedas era muito mais bonita.

- E a catedral de Chartres? Fomos nós que construímos. Aumentou o valor do terreno em...

- Fiquem com todas as suas catedrais, represas, cidades e shoppings, quero o mundo como eu o entreguei.

Não precisamos de uma mentalidade ecológica. Precisamos de uma mentalidade de locatários. E do terror da indenização.